(excertos de uma entrevista já não disponível online)
” (…) Sou professor de desenho e os meus alunos são crianças. Uma tarefa tão apaixonante quanto difícil. Tenho o privilégio de dar aulas num colégio frequentado por pais que (maioritariamente) valorizam este tipo de aprendizagem complementar – chamemos-lhe assim para não complicar demasiado as coisas – e ainda assim, sinto muitas vezes que olham para as minhas aulas como uma espécie de anedota: “aprender a desenhar para quê? O meu outro filho só tem 3 anos e já desenha…” ou o clássico “Não vale a pena inscrevê-lo. No que diz respeito ao desenho o meu filho sai a mim: não é capaz de fazer uma linha direita”.
“Penso que aquilo que alguns pais mais temem é imaginarem os seus queridos filhos transformados em (horror!) adultos artistas e não nos médicos ou advogados com que sonharam (os pais). (…) O meu objectivo não é que as minhas aulas sejam uma incubadora de pintores maltrapilhos. O meu grande desafio é precisamente conseguir que eles se tornem no adulto que sonham ser (as crianças) e que ainda assim continuem a desenhar. Porque uma coisa definitivamente não invalida a outra. Desenhar ajuda a concentração. Ajuda-nos a saber estar sozinhos, a organizar ideias e pensamentos abstractos. A ver em vez de olhar. Isto, parece-me, é útil para qualquer profissional”
“De facto, a necessidade de desenhar nasce connosco – assim como a de dançar ou cantar. É visceral, é uma urgência, uma vontade inata de criar que caracteriza os seres humanos desde tempos primordiais. Essa parte não é ensinável. O que podemos fazer pelo desenho é olhá-lo como um desporto acessível: todos podem praticá-lo e quanto mais treinarmos melhores serão os resultados”
“Ao contrário do que é comum pensar-se, o desenho não é um dom. Tal como no futebol, o facto de haver uns poucos iluminados para quem tudo parece mais fácil e rápido não invalida que qualquer um possa dar uns toques numa bola com os amigos uma vez por semana. A ideia é mais ou menos a mesma”
“Não é correto dizer-se que um adulto não sabe desenhar, será mais correto dizer que se esqueceu de fazê-lo. Qualquer criança saudável gosta e sabe desenhar porque… desenha. (…) Depois porque o faz sem qualquer complexo, sem qualquer medo ou comparação: o menino que vai a correr mostrar aos pais o desenho de uma “nave espacial com um escudo anti-cometas e raios paralizantes” – três traços e um triângulo – é naquele momento o menino mais feliz e realizado à face da terra. Ou da lua.”
“Só por volta dos 9 anos (…) as crianças começam a deixar de desenhar. Estão na idade de se rirem dos estampanços alheios e sabem que os outros se rirão dos deles também. (…) É então que começam a olhar para o lado, a comparar os desenhos, a esconder o deles com uma mão em concha. A solução mais eficaz é quase sempre a mesma: deixar de desenhar. Não havendo desenho, não existe erro. Abdicamos do gozo para evitarmos ser gozados. É triste.”
“(…) Numa sala onde 20 alunos desenhem uma cadeira, teremos sempre 20 desenhos diferentes no final. Se de seguida pedirmos aos mesmos 20 alunos para voltarem a desenhar a mesma cadeira, teremos outros 20 desenhos diferentes. Diferentes entre si mas também em relação aos primeiros. A cadeira é a mesma, os quarenta desenhos não.
E (…) o que é mais bonito (…) é que nenhum dos 40 desenhos está “errado”. Porque também não existe um desenho “correto”. O meu desenho da cadeira é a minha visão, aquela cadeira filtrada pelos meus olhos, cérebro e mão. Já o teu desenho é a tua visão – outros olhos, outro cérebro, outra mão. Por isto nos fascinam tanto os desenhos dos outros”
“Falo de crianças entre os 6 e os 9 anos (até aos 17, actualmente) que uma vez por semana, trocam uma hora de recreio por um lápis cumprindo exercícios que não parecem ser exercícios e atingindo progressivamente objetivos dos quais raramente tomam consciência”
“Os resultados não são imediatos e, na era do 5G, é difícil fazê-los lidar com essa frustração. É difícil fazê-los deixar de dizer “está horrível” mal acabam de desenhar. É difícil fazê-los perceber como estão a desenhar melhor, como se tornaram melhores observadores, como ficam tranquilos ao desenhar. Eu, os pais e os professores notamos bem as diferenças. Se tudo correr bem, também eles um dia hão-de notar”
Respostas de 2 a “Porquê Aulas de Desenho?”
Que demais! Suas ideias vão ao encontro das minhas… fiquei feliz em ler tudo isso.
Um abraço!
🙂
Obrigado Ismael. Um abraço