“RETRATOS. Tacteava-lhe o rosto e desenhava retratos que nunca iria poder ver”, João Moreira de Sá (in Micro Cuts)
116.
AYAMONTE. Primeiro repetimos as coisas por graça, depois já as repetimos tantas vezes que as transformámos num hábito. Mas quando as repetimos vezes suficientes, damos por nós e elas são tradição. É isso que se passa com a ida anual a Ayamonte. Antigamente íamos lá pelos caramelos, hoje vamos lá já ninguém percebe muito bem porque (à parte o preço do Gasóleo) mas a ocasião é sempre uma festa. São as compras improváveis, o carro atestado, o maravilhoso jantar de tapas na Casona mais os camarões do Ramon para trazer. Hoje foi dia de lá voltar, e voltou a ser divertido. ::: Este desenho foi feito o ano passado numa esquina da Calle Lusitania, virado para a Praça junto à Marina, enquanto bebia uma Orchata de Chufa comprada ali mesmo na loja da esquina. Num copo de vidro (“Beber Orchata num copo de plástico é como beber vinho num copo de plástico: não se faz!”, disse-me a senhora antes de o servir) que vem literalmente gelado. Há poucas bebidas mais refrescantes e saborosas para se beber naquelas ruelas escaldantes. Aconselho vivamente.
115.
PETÚNIA. Faz agora precisamente um ano. Sentámo-nos para almoçar – a família quase toda – uma mesa de oito ou nove. Esperámos cerca de hora e meia até finalmente chegarem os pratos pedidos, entregues pela própria Cozinheira. Uma frase feita atravessou-me o pensamento: “se no Algarve se soubesse trabalhar o Turismo, isto podia ser o Paraíso…”. Afinal o restaurante inteiro andava num alvoroço porque nesse dia os dois únicos empregados que tinham decidiram faltar. Sem um aviso ou justificação. Aliás, como viemos a saber mais tarde, nunca mais voltaram a aparecer, nem para receberem o que lhes faltava pagar. De novo a frase feita a atravessar-me o pensamento.
105.
SALA DE ESPERA. Quantas mais pessoas à espera, mais fácil se torna desenhá-las disfarçadamente. É uma chatice quando dão por isso porque ou ficam desconfiadas, ou dizem logo ao amigo do lado “aquele senhor está a desenhar-me”, ou começam a fazer pose para “ficar bem no retrato” e então continuar aquele desenho deixa de fazer sentido para mim. ::: Ultimamente, fora das grandes cidades, tem-me acontecido as pessoas virem ter comigo e pedirem para ver o desenho que acabei de fazer. Seja o desenho delas próprias, duma pessoa sua conhecida ou de outra coisa qualquer. E então começam a fazer toda a espécie de perguntas e pedem para ver mais desenhos. Gosto muito destas abordagens porque finalmente dão sentido a todos aqueles textos que li sobre “o desenho enquanto forma de aproximação dos indivíduos”. Afinal é mesmo verdade.